O Simbólico na contaçao de histórias (A) Ponte para o Sagrado

 

por Cléo Busatto (Brasil)

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Abordar o sagrado na contação de histórias é como andar em areia movediça, pois existe o risco, de quanto mais avançar, mais submergir. Pode-se chegar a ele pela via metafísica, em que o conceito de sagrado, a hierofania, é entendido como a crença em Deus. Mas pode-se ir por outra via, decorrente da antropologia do simbólico, a que pretendo tomar, que vê o sagrado enquanto dimensão unificadora de experiências, que conduz ao eu individual. Desfaz-se o conceito de um único centro organizador da experiência do sagrado (Deus, cosmo, natureza), exterior ao homem, e que se manifesta como uma realidade superior a ele e que dá sentido ao mundo. O conceito de sagrado a ser tratado aqui sugere um retorno ao centro do ser humano, que sacraliza seu próprio eu ao vivenciar situações simbólicas.

O racionalismo e o iluminismo refutaram a imaginação enquanto portadora do saber, negaram o simbólico, o arquetípico e o sagrado e, na urgência do novo esqueceu-se da sabedoria ancestral. A partir daí as histórias adormeceram. O romantismo se encarregou de recuperar a estética da oralidade e, nesse período, foram elaborados vários estudos e registros das histórias da tradição oral. Não faltaram vozes de folcloristas, linguistas, antropólogos, psicólogos, estudiosos de religiões e tradições apresentando as suas leituras dos contos. Alguns apoiados em teorias científicas, outros na metafísica. Porém, uma coisa é fato, todos se deixaram, em algum momento, envolver pelos encantos das histórias.

No século XXI continua-se a refletir sobre elas. Talvez agora, depois de tantos olhares, como o do pensamento sistêmico que mostrou que toda realidade é maior que a soma das partes e que o racionalismo não é a única via para o saber, outras possibilidades se abrem a nossa volta. Sustentados pela complexidade, começamos a ver os contos também sob as lentes do sagrado, esta dimensão passível de não-explicação, por verticalizar a experiência humana e incorporar o mistério do ser e do existir. Admitir essa dimensão é reconhecer que nem só para se divertir e se distrair se presta um conto.

As histórias que trazem a compreensão da cultura e do espírito de um povo mantêm o seu coração mítico aceso. A sua estrutura literária é forjada por imagens que querem dizer alguma coisa, seja para mim, como para quem existiu antes de mim ou para quem virá depois de mim. Esse simbolismo assegura sua existência. Para esse imaginário que aqui está se formando, sobre contos e contação de histórias, interessa um coração que se configura na forma circular, e o movimento rítmico da circularidade. O círculo é o símbolo da totalidade, do temporal e do recomeço. O círculo é uma roda, e é na roda de fiar que as deusas tecelãs fiavam o destino. É na roda que soam as histórias, enquanto se tecem as tramas da imaginação. A roda é um ninho, imagem de aconchego e criação. Pensar nessa configuração leva à observação da qualidade e da característica dos espaços usados na narração contemporânea. O espaço físico que reproduz o tradicional palco-plateia estabelece uma relação de poder, separa e hierarquiza. Seja quem for o personagem, artista ou professor, quando este se coloca na frente da plateia, ele é o foco. O palco dá destaque, amplia o que se coloca nele. Na roda diluem-se e integram-se as diferenças, através do ritmo circular que agrega tudo ao todo, que recupera o espírito socializante. O foco deixa de ser aquele que diz, para se voltar ao que se diz.

Na circularidade da roda está o elo entre o mundo de fora e o mundo de dentro, o que liga o objetivo ao subjetivo. Ela é quem une as oposições, transformando as dualidades passíveis de serem unas: sujeito-objeto, pensar-sentir, passado-futuro, individual-coletivo. Nas diversas civilizações e tradições vamos encontrar a figura do narrador na roda, não apenas como o propagador da sabedoria do povo por meio da oralidade, mas também como canal que opera o acesso aos diferentes níveis de realidade. Se o conto é uma expressão do pensamento mítico do ser humano e uma via ao mundo imaginal, que segundo Henri Corbin é o mundo no qual se espiritualizam os corpos e se corporificam os espíritos, o contador de histórias é o ponto de ligação entre as diferentes dimensões do existir. Se o narrador souber conter os significados do conto, põe em prática uma experiência com o sublime, um estado de alma elevado, que transcende a simples observação do real; mas ao perder esta referência, o contato com o simbólico, ele corre o risco de ver sua arte transformada em mais um produto de consumo.

O contador de histórias cria imagens no ar, materializando o verbo e transformando- se, ele próprio, nesta matéria fluída que é a palavra. Ele empresta seu corpo, sua voz, seus afetos ao texto que ele narra, e o texto deixa de ser signo para se tornar significado (ou, ao menos, assim deveria ser).

Ouvir histórias atiça algo que foi esquecido pela urgência da modernidade, por não ser mais experienciado, e do qual se foi separado, talvez sem saber, e lançado nas brumas do tempo com venda nos olhos, preocupado apenas em estar-na-ação, e nunca fora-da-ação, acionando outras formas de ver. A escuta flutuante é um fora-da-ação. Uma senda que conduz à dimensão do sagrado.

Essa atitude de quietude interna, silêncio interior, de se deixar levar pelo embalo dos contos pode proporcionar um contato com o vazio que tudo contém, com o silêncio que traz significações. Pode-se chamar isso de êxtase, tao, self. Seja qual for o nome que se atribui a essa vivência, o que faz sentido é que ela conduz ao centro e proporciona, mesmo que seja por segundos, a certeza de que se faz parte de algo muito maior que a realidade visível. Proporciona um alento para o espírito e uma confortável sensação de estar bem, feliz e em paz. É algo que só é possível sentir, nunca descrever. E quem a viveu bem sabe, e todos um dia já sentiram isso, mesmo que seja por um instante, um instante só.

 

Cléo Busatto, escritora e narradora oral

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BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 2009

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Enviado por su autora, Cléo Busatto, a la Red Internacional de Cuentacuentos.

Prohibida su reproducción, total o parcial, sin permiso de su autora Cléo Busatto.

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